11 de outubro de 2012

Maysa sem pressa - Correio da Manhã (08/03/1969)


Maysa sem pressa


Luís Carlos Sarmento · Fotos: Manuel Gomes

- Não tenho mais pressa de viver

Enquanto ela falava, parecia sentir tristeza de seu próprio olhar. Aquilo que ficou de um mito pré-fabricado. Precisamente Maysa que surgiu de Maysa.
Desta vez, o papo foi no apartamento da Rua Bolívar, em Copacabana, que ela alugou por uma temporada de seis meses. Tem telefone, mas ela ainda não decorou o número. Nota-se o seu abafamento. Além de estar preparando um programa para a TV (é a TV Tupi e o produtor é Carlos Alberto (Loffler), seu amigo “antigo do futuro”) ela ensaia também um show para a Boate Sucata que deve estrear no dia 29 de abril.
- O nome do show será Maysa, nada de Maysa voltou ou coisa parecida. Acho ruim demais. Porque volta se eu sempre estive aqui?
O apartamento é grande e Célia, a empregada, vem com a bandeja do café. E diz que está bom.
- Cheguei com uma paciência ilimitada. Você sabe o que é uma paciência ilimitada? Pois é. Aquela eterna briga que existia dentro de mim já não existe mais. Aprendi a ter carinho comigo mesma. Estou mais coerente comigo. Passei a me aceitar. É difícil. Mas eu me aceito. Hoje eu já escuto os meus próprios diálogos. Repito: os aceito. Aprendi a ter respeito humano.
O café acabou, e ela continua:
- Maysa antiga era uma criança caprichosa, voluntariosa, inconsequente, que os outros descobriram antes de mim. Engraçado, todos me conheciam, ou melhor, conheciam Maysa. Menos eu. Eu não me conhecia. Não me davam oportunidade de me conhecer. Quer ver um fenômeno? Quando eu passava e via cartazes em portas de boates anunciando Maysa eu me perguntava: quem é essa de que tanto falam? Eu não me conhecia.
Lá na outra sala, ouve-se a voz dela no gravador. “Tarde Triste”.
- É a música que mais gosto. Fiz. Não tenho mais físico para cantar “Meu Mundo Caiu”. Coisas de uma Maysa antiga. Não aguento mais. Obrigavam a uma Maysa a seguir uma linha sem reta. Pré-fabricação pura. Hoje não tenho mais aquela pressa que me exigiam. Não tenho mais pressa de viver. Aprendi a ver as horas... Compreendi que o amanhã vai nascer com uma manhã linda de sol. De sol ou de chuva. Mas tenho certeza que vai nascer um amanhã. E isto é importante. Quero viver com calma. Quer ver os amanheceres. Sem pressa. Sem susto. Sem nada. Simplesmente.
 O telefone toca. Maysa pede licença, e se engasga com o número. Era engano. Senta novamente e pede um cigarro.
- Bem forte, daqueles mata-rato. Você tem? Não quero com filtro. Acho ótimo cigarro forte. Pra mim, “Petit-Londrino” ou “Cubanos”. É tão bom. Trago-os com amor. A propósito: foi engano. Na rua, quando eu saio, muita gente se engana comigo. Ninguém me reconhece. Que bom. Ontem na praia disseram que eu tinha os olhos idênticos aos de Maysa. Achei graça. Não disse nada. Que bom ter os olhos idênticos aos de Maysa.
Miguel, o marido, interrompe. Diz qualquer coisa, mas volta logo para a outra sala.
- Ele é ótimo. Tudo para mim agora é lindo. É bom. É lindo. Sinto saudades apenas de meu filho de doze anos que está estudando na Espanha. Está um rapagão. Mas ele virá nas férias. Por falar em Espanha, acabamos de comprar uma casa em Cascais, uma espécie de bairro perto do Estoril, em Lisboa. É linda, mas só vou pensar nela para o ano. Eu nunca sei quanto tempo vou ficar num lugar. Aqui, pretendo ficar até dezembro. Em 70 tenho muita coisa a fazer: tournée pela América do Sul, lançamento de disco na Itália e outras coisas mais. Vou ficando. Meus pais mudaram-se para o Rio. São meus vizinhos.
Célia volta para apanhar a bandeja e Maysa aproveita para dizer:
- Ela é uma boa amiga que eu tenho. Cozinha bem. Eu lá fora emagreci 28 quilos. Mas logo que cheguei aqui ataquei de feijão com arroz, farinha e carne seca durante uma semana. Não aguento mais de saudades.
E música. O que você achou ou está achando do que se tem feito?
- Você não entendeu que eu procurei fugir desse papo? Não quero falar. Sinto-me um pouco desatualizada. Mas posso perceber que o que estão fazendo em matéria de música não é autêntico. Não é música brasileira. Não é puro. Vi muita confusão. Vi gente atacando gente sem se preocupar com o principal que é compor. Produzir. Criar. O importante é criar. Vejo muita confusão. Atacam a Bossa Nova. Porque? Que mal fez ela? Uma coisa eu digo: o que anda por aí nunca foi música brasileira. Nem aqui e nem na África. É confuso, entende?
- E o público?
- Não sei como o público vai me receber. De uma coisa estou certa: estou imune e com muita paciência para aturar tudo. Paciência até demais. Outro dia um colunista escreveu: “Maysa voltou sóbria mas não sabe até quanto tempo ficará sóbria.” Ora, isto é para qualquer um arrumar as malas e voltar. Para nunca mais aparecer. Talvez em outros tempos eu fizesse isto. Agora não. Sou outra. Quero ser entendida da mesma forma como procurei entender-me. 


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