13 de maio de 2013

Imprensa: A voz que vem do Coração, Fernando Sabino - Jornal do Brasil (11/11/1974)


Fernando Sabino

A voz que vem do coração


Aperto o botão da campainha e espero. Tive de subir um lance de escada, o elevador não vem até aqui. É um prédio antigo numa rua transversal de Copacabana. O vestíbulo é amplo – reparo que o papel de parede está descolado junto ao chão, mostrando uma cicatriz no reboco. Quando começo a acreditar que a campainha não esteja funcionando a porta se abre:
-         Ela está para chegar a qualquer momento. Entre, por favor.
É Leila, sua dedicada amiga e secretária. Sigo-a através de várias dependências, inclusive um quarto de dormir. O apartamento, de cobertura, me parece fino e comprido como um navio.
-         Não repara, estamos em obras.
Ela me serve um uísque e me deixa à vontade. Enquanto espero tenho tempo de reparar em tudo, mas estou inquieto, como um mistério que terei de enfrentar de um momento para outro. Vou até o terraço, que se prolonga em todo o comprimento da fachada, extenso e vazio, como uma plataforma de estação. Debruço-me na parte que dá para o mar, fronteira à janela do apartamento onde morou Augusto Frederico Schmidt. A lembrança do poeta morto me deprime, a altura me dá vertigem. Volto para a sala e continua a pesar-me uma sensação de insegurança, emanada dos próprios móveis que me cercam, marcados pelo uso, dos quadros que cobrem a parede, densos de sofrimento, dos livros na estante, todos de espiritismo e ciências ocultas (que mais tarde ficarei sabendo não serem dela). Meia-noite em ponto – hora fatídica das velhas histórias de assombração. Mal tenho tempo de acomodar-me e tomar o meu uísque para sossegar o espírito: ela acaba de chegar.
De repente tudo se ilumina. Como uma curva de estrada sob os faróis de um carro, a sala se acende. Tudo se ilumina com a presença magnética de uma mulher que acaba de entrar, fremente de simpatia, descontraída, aberta, comunicativa, e que se aproxima de mim pedindo desculpas pelo atraso. Sua maneira de me apertar as mãos me liberta instantaneamente da inquietação. Só que não vai ser nada fácil escrever sobre ela. Vejo apenas dois olhos diante de mim, que são como os de Teresa no poema de Bandeira: mais velhos que o resto do corpo – os olhos nasceram e ficaram 10 anos esperando que o resto do corpo nascesse. E entendo sobre o que o poeta disse sobre os dela própria:
“Os olhos de Maysa são dois não sei que, dois não sei como diga, dois oceanos não pacíficos. Maysa são dois olhos e uma boca.”
A boca de Maysa falando e meus ouvidos escutando. Procuro em suas palavras um sentido lógico que complemente a emoção escolhida na sua voz de cantora. É estranho como a admiração à distância pode às vezes queimar etapas: não nos conhecemos senão indiretamente, através de amigos comuns como Aloysio de Oliveira ou Vinicius de Moraes – no entanto, nem um minuto é passado e ela já me fala de sua vida como se eu fosse um amigo de infância. Corremos o risco de só conversarmos assuntos sobre os quais eu não poderia escrever.
-         Porque não? Pode escrever sobre o que você quiser.
Ela vem de uma seção de análise – a análise de grupo: parece embalada na franqueza ali exercida, prolongando-a em tudo que me diz. Prefere análise individual:
-         Já tenho os meus problemas, porque vou me chatear aguentando os dos outros? O que eu quero é viver a minha vida, amar, ser amada, fazer amor. Sofro de solidão. Sou uma romântica.
Como um analista improvisado, vou tentando explicar o seu temperamento, a partir da qualidade que parece presente em tudo na sua vida: a necessidade de amar e a fatalidade da solidão; a força da mulher erigida em mito e a imaturidade de criança; a moça de sociedade e a vida boêmia; a artista profissional e a amadora que gosta de pintar e escrever; até mesmo a mulher magra com tendência a engordar.
-         Não foi tendência a engordar: foi bebida mesmo. Tomei um pileque que durou de 58 a 62. Fiquei com 96 quilos. Deixei de beber e perdi litros e litros.
Eu bebendo, e ela tomando uma xícara de café a cada uísque meu.
-         Beber é muito bom. Muito melhor que não beber. Mas eu não podia: ficava impossível, agredia as pessoas. Um dia vi um amigo nosso saindo pelos fundos para fugir de mim, fiquei chateada, resolvi parar.
A surpreendente desinibição com que ela fala no problema é a prova de que soube enfrentá-lo. Quando todos a supunham com a carreira encerrada, ressurgiu como se tivesse renascido. Não é sem razão que admira Sarah Vaughan ou Ella Fitzgerald, mas sua admiração maior é mesmo por Judy Garland.
-         Eu me casei muito moça: com 17 anos. Ele era 18 anos mais velho que eu, para mim muito mais pai do que marido. Não levei propriamente vida de sociedade, mas me sentia muito tolhida no meio daquela gente toda. Acabava tendo de jogar buraco, pif-paf, ir a boates... o que eu gostava era de cantar.
Aprendeu piano e aos 12 anos compôs a sua primeira música. Que acabou em disco, quando tinha 19 anos, sugerido um dia por um produtor em visita à sua casa. O sucesso deixou a família desconcertada: não era exatamente o que esperavam dela. Por essa ocasião teve um filho (hoje com 18 anos). A família inteira compareceu a sua estreia na TV Record. Daí para frente a situação ficou insustentável. Deixou a família e continuou cantando: no Rio, em Buenos Aires, em Paris, dois anos na boate Blue Angel em Nova Iorque. Sete anos de cura e repouso na Espanha. Outros casamentos, quatro ao todo. E voltou a cantar.
O novo long-play que está lançando esta semana talvez seja o mais importante dos 25 que já gravou: representa a sua nova maneira de cantar e a sua verdadeira maneira de ser. Tentou o teatro, tentou a novela, tentou o show popular, com jogos de luzes e pernas de fora, numa obstinada procura de renovação. Mas não encontrou como agora a verdade da sua arte, despojada de artifícios, na voz nascida nota por nota diretamente do coração. É ela própria que está ali, autêntica, vivida e amadurecida. Não esconde idade: está com 38 anos feitos. Não tem medo de envelhecer nem de morrer. Tem medo é de enfrentar o público. Mesmo indiretamente através de uma entrevista ou do que escrevam sobre ela. Hoje, por exemplo, pensou seriamente em inventar uma desculpa para adiar nosso encontro, dizer que o pai estava passando mal, ou que ela tinha ido para Maricá (onde ela está construindo uma casa que é atualmente o seu sonho de uma nova vida e de um novo amor). Mas acaba conversando comigo até quatro e meia da manhã, e quando lhe digo, ao despedir-me, que não saberei como escrever sobre ela, sugere que eu ouça seu novo disco, preste atenção nas palavras:
-         Eu estou toda ali.


(Publicado originalmente no CADERNO B do JORNAL DO BRASIL - Rio de Janeiro, 2ª feira, 11 de novembro de 1974.)

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